“Os funcionários judiciais, em geral, trabalham muito para além do exigível, sem receber horas extraordinárias. Havendo bom senso de ambos os lados, seria possível acabar com estas greves rapidamente.”
A justiça, no nosso país, infelizmente, não tem o prestígio que devia ter, não pela falta de qualidade ou de empenho de quem aí trabalha, mas sobretudo pela sua lentidão ou pelos quiproquós processuais sucessivos. Os portugueses, por exemplo, já não acreditam que alguma vez sejam julgados arguidos famosos como Ricardo Salgado, José Sócrates ou outros. Os portugueses sabem que o nosso sistema processual criminal permite que sejam levantadas sistematicamente questões que, de nulidade em nulidade, de recurso em recurso, até à prescrição final, embrulham os processos de tal forma que os próprios profissionais do direito já têm dificuldade em perceber e em explicar o que se está a passar.
Mas, desta vez, o problema é outro: os tribunais estão a ficar de pantanas porque neste momento estão a decorrer, sem fim à vista, simultaneamente duas greves decretadas pelos dois sindicatos do sector.
Os motivos das greves são quase coincidentes e prendem-se, essencialmente, com um suplemento de recuperação processual que, não estando integrado no salário, só é pago 11 vezes por ano, com o bloqueio nas carreiras e, ainda, com a necessidade de abertura de concurso para entrada de mais funcionários.
Quanto a esta última reivindicação, já está a decorrer um concurso para a entrada de 200 funcionários, o que, sendo certamente pouco para as necessidades, já é alguma coisa, e espera-se que o suficiente para os funcionários judiciais suspenderem a greve.
Já no que concerne à integração do suplemento de recuperação processual no salário, exige-se um esforço suplementar do Ministério da Justiça, tendo em conta que este designado suplemento foi criado no tempo em que Vera Jardim era ministro da Justiça, há cerca de 25 anos, pelo que parece evidente que já não é um suplemento de seja o que for, mas faz parte do salário dos funcionários e, como tal, deverá ser legalmente reconhecido. As contas a fazer serão da responsabilidade do Ministério das Finanças, mas parece-me que é de elementar justiça legalizar a situação. Por último, embora haja outras reivindicações, nomeadamente quanto à aposentação, o desbloqueio das carreiras parece-me ser uma medida que não será de efeitos imediatos e que certamente poderá ser acordada com escalonamentos no tempo.
Da minha experiência profissional, tenho como certo que os funcionários judiciais, em geral, trabalham muito para além do que lhes seria exigível, não recebendo horas extraordinárias, pelo que me parece que, havendo bom senso de ambos os lados, seria possível acabar com estas greves rapidamente. E vai levar bastante tempo para se conseguir recuperar todos os agendamentos que foram dados sem efeito.
O que me parece absurdo é que, em vez de uma negociação célere e de boa-fé, o Ministério da Justiça venha agora, semanas depois do início das greves, anunciar que pediu um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a legalidade de uma das greves. Será que no ministério não há juristas próprios para aconselharem e dizerem o que a ministra da Justiça deve fazer? Ou será que se passou a utilizar o Conselho Consultivo como um biombo? Aguarda-se, assim, rapidamente, para bem de todos nós, um acordo razoável entre Governo e sindicatos que ponha termo ao caos instalado nos tribunais.
O fim das greves seria uma boa notícia no mundo da justiça a acrescer à simpática notícia que foi o recente acórdão do Tribunal Constitucional que, no que toca às ordens profissionais, veio lembrar que a Constituição de 1976 não é corporativa. As Ordens foram criadas pelo Estado e a sua democraticidade deve entender-se como “indissociável da prossecução de interesses de ordem pública no contexto de um Estado de Direito constitucional”. Democraticidade que não respeita apenas ao processo de designação dos titulares dos órgãos das Ordens, mas também quanto à sua composição, isto é, é a própria democraticidade das Ordens que legitima a, tão contestada, entrada de leigos nos órgãos destas associações profissionais.
Mas a procissão ainda vai no adro: depois de publicada a lei, o Governo terá quatro meses para a regulamentar; tendo em conta a criminosa inércia governamental na regulamentação do sorteio dos juízes nos tribunais de recurso, esta reforma das Ordens poderá só ter efeitos práticos no dia de São Nunca.
in Publico 4fev2023